Mulheres na academia: Doiara Santos

Reconhecer o lugar da mulher nos diferentes segmentos sociais não é sempre uma tarefa fácil. No ramo acadêmico, de maneira especial, há muitos obstáculos a serem superados nesse sentido.

Para entendermos melhor sobre esse mundo, convidamos a educadora física Doiara Santos para nos contar um pouco sobre sua carreira, obstáculos e desafios enquanto mulher na academia.

"Nasci na cidade de Itabuna, sul da Bahia, filha de uma pedagoga e um comerciante. A minha mãe teve uma escolarização tardia, cujo acesso e permanência foram comprometidos por sua difícil condição de vulnerabilidade socioeconômica. O meu pai trabalhou desde a infância e concluiu o seu ensino médio enquanto sonhava em ser jogador de futebol. Quando criança, acompanhei a minha mãe em sua formatura na universidade e tenho disso uma memória muito viva: coloquei o capelo de formatura dela! Ela foi a primeira pessoa da família a ingressar na universidade (pública!). Acho que essa é a minha primeira memória de uma universidade. Fui muito incentivada à leitura, com a casa cheia de gibis, revistas e livros. Desfrutei de uma boa escola pública no meu bairro, que me deu acesso de qualidade, dentre outros componentes curriculares, à Educação Física e esporte (com espaço físico de rara qualidade para o contexto). Foi na piscina que o meu gosto pelo esporte se transformou em compromisso, com grandes experiências de socialização e aprendizados.”.
doiara santos
Doiara Santos
Educadora Física e pesquisadora

Doiara Santos: uma história e tanto!

Ao fim do ensino médio, o curso de Educação Física seria ofertado pela primeira vez na única Universidade pública da minha região (até então). Ingressei, aos 17 anos, na Universidade Estadual de Santa Cruz, onde não só passei pelo processo de formação de professora, mas ampliei a minha visão de mundo como cidadã. Durante a graduação, comecei a ministrar, como tutora, aulas de inglês para ter uma renda própria, enquanto morava na casa dos meus pais.

Aos 23, ingressei no Mestrado da Universidade Federal do Espírito Santo, em que, ao fim do processo, tive a minha primeira experiência como professora universitária substituta. Fui constatando os vários marcadores sociais de diferença ao me identificar como mulher, nordestina, preta e lésbica, de forma muito limitada ainda, com muitos medos e até alguns complexos de inferioridade.

O processo do mestrado abriu portas para um doutorado no Canadá, onde ganhei bolsa de subsistência por ser estrangeira, e só por isso pude realizá-lo (custava mais de 5 mil dólares por semestre). Durante o doutorado, fiz e fui aprovada no primeiro concurso público para professora universitária, no Estado da Bahia, em 2013. Concluí o doutorado no Canadá, enquanto trabalhava no Brasil, criando dívidas com passagens aéreas de idas e vindas periódicas para conseguir cumprir todas as etapas. Desde então, fiz mais 4 concursos, tentando ajustar as minhas expectativas profissionais e pessoais. Fui aprovada em todos em primeiro ou segundo lugar.

Os marcadores sociais de diferença se sobressaem na academia, constatada por dados formais, mas vividos no cotidiano de corredores com fotografias que homenageiam uma longa história de professores em posições de chefia e liderança (homens brancos).

A consciência do lugar que eu ocupo está sempre em construção, se ampliando e se consolidando nas atividades de ensino, pesquisa e extensão, tripé básico da universidade. Ao problematizar gênero e questões étnico-raciais nos currículos da Educação Básica em aulas de formação de professores, ao incluir a perspectiva/representação de mulheres e negros sobre o esporte na minha produção científica, ao pensar eventos que mobilizem estes temas para a formação dos futuros professores de Educação Física e para a comunidade acadêmica em geral, estou, com isso, me reconhecendo e ampliando meus conhecimentos.

Como você vê o lugar da mulher negra na academia?

Doiara Santos: Não foi, não é e não será um lugar dado, mas, reivindicado e conquistado no coletivo, inclusive por movimentos sociais (negros e feministas) que se construíram historicamente a custo de debates e embates diante das diversas violências sistêmicas (que ainda não estão de todo superadas!).

A educação não pode prescindir de sua garantia como direito social de todo cidadão e cidadã. O lugar da mulher negra na academia ainda é um lugar de se empreender lutas e consolidar conquistas, ressaltando a importância das políticas sociais para acesso e permanência das mulheres negras no ensino superior, pautadas nos princípios democráticos que regem a nossa sociedade.

Conte um pouco da sua história na pesquisa, citando suas principais áreas de interesse e a maneira como se deu sua introdução nesse mundo.

Doiara Santos: A área da Educação Física é paradigmaticamente vinculada a visões biologicistas de corpo, treinamento físico, performance, saúde etc. Eu não me identifico com essa tradição paradigmática.

Busco, na minha pesquisa, interlocuções entre a Educação Física e as Ciências Humanas e Sociais. Peculiarmente me interesso sobre o papel das mídias no esporte e, nesse caminho, acabei tematizando gênero, questões étnico-raciais, a mitologização do ser atleta vs a formação sociopolítica dos sujeites, o movimento olímpico e questões identitárias, históricas e culturais.

Qual é a importância do movimento negro e do feminismo no ambiente acadêmico?

Doiara Santos: Estes movimentos, em articulação com as atividades de ensino, pesquisa e extensão, colaboram para a efetivação do papel social da universidade: o de promover a formação de pessoas que venham a contribuir para uma sociedade amparada em princípios democráticos.

A articulação entre estes movimentos e as pesquisas acadêmicas potencializa a formação de pessoas e a intervenção em diversas áreas para fomentar ações cotidianas de rupturas com culturas de violência, preconceitos e discriminações.

Você entende que há diferentes lutas a serem travadas na ciência para que as mulheres e pessoas negras consigam conquistar seu espaço? Por quê?

Doiara Santos: Sim. São muitas facetas do preconceito e discriminação enraizadas estruturalmente nas instituições sociais. A engrenagem para a transformação é complexa e demanda a mobilização de várias áreas do conhecimento, práticas sociais e culturais, como, por exemplo, a própria política, o esporte, o empreendedorismo, e com a ciência não é diferente.

Políticas sociais de acesso e permanência no ensino superior são importantes, mas, mais que isso, ensejar mudanças estruturais e culturais demandam ações contínuas, sobretudo, no campo da educação.

Qual a importância de se trabalhar questões étnico-raciais nos esportes?

Doiara Santos: É preciso romper com a discriminação e a estigmatização do corpo negro. Isso perpassa promover a democratização do acesso às práticas corporais, seja para o lazer, esporte educacional ou esporte de rendimento.

Os discursos sociais precisam ser mobilizados para a compreensão de que os esportes refletem aspectos da sociedade (reproduzindo seus problemas), mas também são territórios férteis de contestação, reflexão e rupturas. Daí a importância das pesquisas a respeito do tema. Por exemplo, romper com a cultura racista no futebol e outras práticas perpassa mobilizar as instituições, seus líderes e seus ídolos. O esporte de rendimento é excludente e seleciona sim, mas não é natural, por exemplo, que, dentre as mortes por afogamento, sejam as crianças negras as que mais morrem por não saberem nadar. Este é um problema histórico e cultural que reflete condições socioeconômicas de acesso às piscinas e políticas segregacionistas de várias sociedades em diferentes tempos históricos, mas que ainda impactam a apropriação cultural das práticas corporais.

É preciso parar de naturalizar a ausência de negros em determinadas modalidades esportivas, questionar as razões disso e empreender ações que modifiquem o cenário e ofereçam condições de prática. O esporte, tal como a educação, é um direito social previsto constitucionalmente.

Quem são as mulheres que te inspiram? Conte um pouco sobre a influência delas em sua vida.

“A minha avó e a minha mãe são mulheres cujas trajetórias de vida me inspiram. Da minha mãe, em especial, a luta pela própria educação, de autonomia e independência financeira, de busca pelo conhecimento e informação. Eu tive muitas professoras que admirei na escola e na universidade: Raquel (matemática), Mara Rute (redação), Márcia Morel, Regina Marchesi e Micheli Venturini (Educação Física). Mulheres no esporte como Maria Lenk e Joanna Maranhão (natação), Marta (futebol). Na literatura e na arte, como Clarice Lispector e Frida Kahlo. Na ciência, como Marie Curie e Nise da Silveira. Na pesquisa em Educação Física, como Silvana Goellner e Suraya Darido. Todas elas me inspiraram com suas histórias, com o que alcançaram, com a excelência no que fizeram. Algumas, muito à frente de seus tempos.”.
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Doiara Santos
Educadora Física e pesquisadora

Na sua opinião, quais são as principais lacunas em relação à igualdade de direitos e a equidade do ponto de vista de reconhecimento entre homens e mulheres na academia?

Doiara Santos: Se, por um lado, na academia, há equiparação salarial entre homens e mulheres por força de lei no cenário do concurso público, por outro, pouco se considera e investiga a comum dupla jornada de trabalho de mulheres em relação à academia (com trabalho doméstico, gestação/cuidado de filhos), que impacta diretamente a produção científica delas num cenário de lógica de produtividade frenética que reflete em prestígio e capital social.

Há ainda a urgente necessidade de rompimento com os padrões de feminilidade impostos, incluindo mais pesquisas sobre mulheres LGBTQIA+ na academia, além da necessidade de abordagens interseccionais sobre gênero, raça/etnia, classe.

Se fosse para citar algumas pautas importantes que você defende enquanto mulher negra pesquisadora, quais seriam?

Doiara Santos: Não homogeneizar a mulher negra pesquisadora. Valorizar as vozes e perspectivas daS mulhereS negraS na academia. A partir disso, transformar os aprendizados sobre tais perspectivas em ações cotidianas de enfrentamentos às discriminações e preconceitos via políticas institucionais dentro das universidades, em reconhecimento e valorização que se expandam para as comunidades que circundam a universidade, ampliando o impacto social de compreensão da diversidade.

Há alguma causa com a qual você se identifique mais? Se sim, qual? Há projetos que você desenvolve?

Doiara Santos: A articulação entre formação humana sociopolítica e esporte tem me chamado muito a atenção recentemente. O potencial do esporte para contribuir para a formação de pessoas muito além de aspectos “psicomotores”, mas em formação atitudinal (valores sociais) dentro e fora da escola. O meu mais recente projeto investiga o posicionamento sociopolítico de atletas de rendimento em mídias sociais, problematizando a mitologização do atleta/herói em contraste com o seu papel social como cidadão com visibilidade. Esse tipo de estudo acaba tangenciando temas como a própria pandemia (vacina/proteção), racismo, movimento LGBTQIA+ etc.

Mulheres na academia e a Sapatista

Nós da Sapatista sempre buscamos valorizar o trabalho das mulheres em diversas áreas, inclusive na academia. 

Conheça mais o trabalho da Doiara Santos: