Que a dança é um universo predominantemente feminino não temos dúvidas. Mesmo sendo elas quem sempre estiveram em maior representatividade no meio, muitas vezes, seus corpos eram e são atrelados à dança como sendo corpos frágeis e/ou sexualizados.
Durante muitos anos, as mulheres eram consideradas amadoras no contexto da dança e, apenas em 1983, é que passou a ser permitida a presença das mulheres como alunas de dança.
O corpo está sempre em movimento e em constante processo de transformação de energia, onde o físico, mental e emocional interagem o tempo todo. Parece algo simples; no entanto, é muito mais complexo do que simplesmente resumir os corpos a certa fragilidade ou simplesmente como algo carnal. Nesse sentido, talvez essa subjetivação dos corpos explique porquê ainda temos poucos homens inseridos no contexto da dança e porquê as mulheres ainda são vistas na dança como um corpo que se move, com curvas, bonita e sensual.
Para falar um pouco mais sobre mulheres na dança, convidamos a talentosa Paula Finn para uma entrevista aqui no nosso blog.
Paula Finn: Comecei a dançar em 1998, tinha 7 anos. Comecei dançando flamenco, na escola da Cadica Costa.
Paula Finn: Desde pequena, eu dava aula pra minhas colegas no intervalo do colégio, fazia apresentações para família no natal, dançava a maior parte do tempo.
Na escola de dança, eu era uma criança séríssima, sempre levei muito a sério o estudar dança. Me lembro de ficar depois da aula pra ver os ensaios da Cia profissional. Cresci dançando o tempo todo. Com 14 anos, fui convidada a entrar na Cia, e acho que foi naquele momento que me vi como dançarina.
Aí entrei na primeira turma da Licenciatura em Dança da UFRGS e ali tive certeza.
Paula Finn: Vai ser difícil não ser clichê aqui, porque a minha maior referência, tanto no pessoal quanto no profissional, é a minha mãe, a Clô Barcellos. Ela é uma mulher fortíssima, artista, criou a sua própria empresa. Sempre se moveu a partir do seus desejos, sempre viveu a vida muito intensamente e, ao mesmo tempo, sempre correu muito atrás pra chegar aos lugares onde chegou.
E ela me ensinou muito sobre ser profissional na arte ser artista nesse mundo, sempre lutou muito pelos direitos trabalhistas dos artistas, durante a criação dos editais públicos, dos concelhos de cultura, dos sindicatos, e isso me acrescenta muito, sempre.
Outra grande referência é a Silvia Canarim, minha professora e diretora de flamenco. Ela desenvolveu uma linguagem própria no flamenco e criou a Cia Silvia Canarim Flamenco e Contemporaneidade, da qual eu fiz parte durante 10 anos e aprendi muito. Ela tem uma autenticidade que faz com que o trabalho dela seja muito especifico e reconhecível. É uma das minhas grandes referências, inclusive impressa no meu corpo, no meu movimento e na linguagem que eu estou construindo.
Paula Finn: Eu acredito que a dança tá vinculada diretamente com a existência, com a relação com o nosso corpo físico, com o sensível e com o material.
Se eu me movimento, eu danço o tempo inteiro. A dança é a relação do corpo com o mundo, e é a nossa relação mais básica. Dança é bruxaria, porque lida com o incompreensível, com o sensível. Se liga com a liberdade, com a autonomia, com a imaginação, com o agora, com o efêmero. Com a respiração, a compreensão, a aceitação. A dança é a minha maior sinceridade, é estar com o corpo inteiro.
Paula Finn: Eu venho do flamenco e, com isso, tenho uma relação antiga com a música e o ritmo.
Me fiz percussionista em paralelo. Daí, aprendi na dança contemporânea o ritmo interno do corpo e do silêncio. Na performance, aprendi a relacionar o mover com a ação e com o comprometimento com essa ação, em transformar o sentimento em fisicalidade.
O palco, o estar em cena, também sempre foi muito presente na minha carreira, e não sei muito bem explicar a magia que acontece neste momento. Me arrepio por lembrar, pois, neste ano de 2020, os palcos foram retirados da nossa rotina, e me sinto distante de algo essencial na minha vida.
Paula Finn: Sem dúvida, é aproximar as pessoas da dança. Como professora, é trazer a dança como algo presente em cada um, e fazer cada vez mais pessoas dançarem e deixar de ter a dança como algo para “poucos”, como uma arte virtuosa apenas.
Como artista, é seguir criando. Desenvolver uma liguagem própria e voltar para os palcos! Seja como performer ou como diretora.
Paula Finn: É dificil responder essa pergunta porque a dança sempre foi um lugar do feminino, talvez porque o feminino tem, na sua essência, mais abertura para lidar com o sensível, e a dança se relaciona com o sensível diretamente.
Acho que a dança é uma das poucas artes onde a mulher sempre foi presente como criadora, desde lá da dança expressionista, da quebra do Ballet Romântico, que tinha muito essa relação da mulher vulnerável, das fadas, das princesas…. E, na arte expressionista, quando começou a dança moderna, as mulheres sempre foram muito fortes.
Mas, trazendo pra vida cotidiana, as minhas alunas são praticamente mulheres, a dança é um lugar predominantemente feminino, ainda que tenham muitos homens que dançam e atuam… mas acho que tem uma equidade no discurso, e no respeito ao discurso.
Então, eu vejo a mulher inserida fortemente na dança de Porto Alegre e gostaria que não tivesse tanto essa divisão, gostaria que a dança se aproximasse mais dos homens e gostaria que a dança não fosse vista nesse lugar de belas artes, de uma mulher que se move, com as curvas do corpo. Gostaria de retirar a imagem da dança como uma mulher bonita que sabe se mover.
Paula Finn: As principais barreiras acho que estão nesse lugar de quebrar com a obviedade da feminilidade, o bonito, o sensual. Acredito do interesse em ir além dessa primeira relação, de que uma mulher que dança é uma mulher bonita e interessante.
É esse lugar de entender que existe algo para falar para o mundo, e que o corpo é um corpo não sexualizado. De que eu entendo do que estou falando. Essa é uma barreira importante e acho que ainda se sofre muito com isso. E é confuso porque isso também existe, porque temos que honrar a nossa sensualidade, mas o corpo é muito mais do que isso. E acho que essa é uma grande barreira.
Paula Finn: Em 2016, eu e outros artistas criamos um espetáculo chamado “Hiato”, onde a dança se relacionava ao vivo com a projeção. Era um espetáculo singular, que eu não saía do lugar, a movimentação era toda focada na parte superior do corpo. E fomos reconhecidos na classe da dança, ganhei o Prêmio Açorianos de Melhor Bailarina e levamos o destaque no Porto Alegre em Cena também, pela relação de todos os elementos cênicos que transformavam o espetáculo numa experiência singular e sensorial.
Além disso, eu sempre tive uma proximidade com a música e sempre fiz parcerias com artistas dessa área, como a Paola Kirst e a Clarissa Ferreira. E isso me fez sair uma pouco da “bolha” da dança.
Paula Finn: A volta do toque! O chamado da liberdade de ocupar os espaços, dançar e abraçar as pessoas. A dança vai vir pra celebrar a vida. Eu quero acreditar e sonho com esse momento.
Paula Finn: Acredita. Acredita no que tu tem pra dizer pro mundo. Procura as pessoas que pensam quem nem ti (tem muitas!). Busca uma rede, cria o teu espaço. A cultura tá passando por um desmonte ideológico… os projetos públicos estão escassos – a Usina do Gasômetro fechou, a Companhia Municipal foi paralisada, os editais tão cada vez com menos verba. Mas somos muitos! Não tenha medo de pedir apoio e faça aulas! Faça aulas! Faça aulas!
Paula Finn: Porque a arte é uma maneira de ver o mundo. Porque a arte burla o sistema capitalista, aceita as ruidezas, porque a arte honra o sensível. Porque a arte ressignifica o presente e o mundo palpável, ressignifica a experiência. Nos lembra o tempo todo que a existência é complexa.
Porque a arte nos forma críticos, seres pensantes e questionadores. Porque a arte representa a liberdade da expressão. Do sentir e do expressar. A arte é a via da expressão. A arte é potência de vida, é identidade.
A arte sempre existiu, sempre vai existir, clandestina ou não, oficial ou não, reconhecida ou não. A arte vê cor, e se tudo é cinza, a arte vê a cor cinza. E ela nos aproxima da natureza num sentido de existência, nos traz empatia.
A arte é extremamente essencial pra gente aceitar o incompreensível, pra gente existir em coletivo. Pra gente compreender o tempo do agora, a contemporaneidade, escancarar a realidade, e fantasiar o concreto. A arte é poesia… e poesia não tem limites.
Nós da Sapatista sempre buscamos valorizar o trabalho das mulheres em diversas áreas, inclusive na dança.
Conheça mais o trabalho da Paula Finn através dos seguintes canais:
Instagram: @apaulafinn
Facebook: Paula Finn