Texto escrito por Hariagi Borba Nunes – cisSapatona, fronteiriça, jogadora de sinuca, mestra em Educação, Sexualidade e relações de gênero, e doutoranda em História.
Dos muitos encontros que tive com a palavra sapatão, quero destacar dois. O primeiro, quando criança no pátio da escola, estávamos uma amiga e eu, quando um grupo de meninos nos nomeou de sapatonas. Não sei por qual motivo me senti tão mal. Lembro de nem pensar na minha sexualidade. Eles me encaixotaram antes de saber quem eu queria ser.
Já no segundo momento, há uns anos atrás, atravessei a rua com meu ex namorado (pessoa transmasculina) e outro grupo de meninos – agora mais velhos e de carro – passaram por nós gritando: sapatão. Dessa vez, não fiquei triste, talvez um pouco apreensiva de ser atropelada, mas, em questão de segundos, após o berro, gritamos: SIM, SOMOS SAPATÃO!
A diferença entre essas duas situações é que, na primeira, ser sapatão é algo ruim, negativo, uma condição à omissão. Produto de uma norma cisgênera/heterossexual que nos coloca – mulheres lésbicas e pessoas que vivem lesbianidades, como meu ex namorado – enquanto seres doentes, passíveis de serem corrigidos. Assim, essa estrutura reproduz nomeações pejorativas – como bixa, machorra, caminhão, sapatão – para inferiorizar, humilhar, desumanizar existências, negando e reprimindo nossas vivências e desejos.
Na segunda situação, a palavra sapatão deixa de ser ofensa produzida pela heterossexualidade perante corpos lésbicos e passa a ser uma identidade política de combate. Ou seja, apropriamos, sequestramos e transformamos o que nos humilhava em identidade, reconhecimento e resistência. Logo após a resposta “SIM, SOMOS SAPATAO”, não tivemos tempo de observar a expressão na cara dos sujeitos; porém, já vivenciei inúmeras outras vezes o mesmo ataque, e tive o prazer de ver perplexidade e assombramento nas caras de quem esperava vergonha e humilhação. Quando nomeamos quem somos, não deixamos espaço para que façam por nós.
A história da palavra sapatão
Historicamente, o termo sapatão advém das feministas das décadas de 20-30, que começaram a usar sapatos. Nada relacionado à sexualidade delas, mas, sim, ao fato de estarem usando “roupas de homem” e tomando um lugar de poder que não era delas: o espaço público.
Para a norma machista e sexista, o movimento feminista é associado à destruição da moral e dos bons costumes da sociedade. Sendo assim, nesses períodos, ser feminista era um termo pejorativo em si. Evidentemente, exisitam mulheres lésbicas dentro desse movimento, mas elas também sofriam discriminação e invisibilidade em relação a feministas heterossexuais.
Com o passar dos anos, o termo foi se popularizando enquanto um xingamento pejorativo para mulheres masculinizadas, estereotipando o jeito de andar, caminhar, vestir e se comportar das experiências lésbicas. A norma heterossexual questiona comportamentos porque compreende a existência binária dos gêneros: homem/mulher; composta por uma única visão dos corpos: a cisgênera; atravessada por uma sexualidade correta: a heterossexual. Tudo que desvia dessa lógica é anormal.
Mas por que trocar lésbica por satapão? Na verdade, o que está sendo sugerido não é o abandono da identidade lésbica, até porque ela tem uma história de lutas dentro do movimento social importante, além de proporcionar dados estatísticos imprescindíveis para a composição de políticas públicas à nossa comunidade e resgatar a invisibilização constante das lésbicas na história do movimento LGBT.
Acredito que a categoria sapatão alia-se à lésbica, tensionando alguns pontos de sua composição. Destaco aqui dois:
- A categoria lésbica é associada à mulher cisgênera. Ou seja, ser lésbica é ser “biologicamente mulher”. O movimento de mulheres, cis e trans, tem questionado “o que é ser mulher”, evidenciando que ela é uma construção social assim como o gênero, sexualidade, raça.
- A ciência médica e suas derivadas (biologia, anatomia, psicologia) alimentam discursos patológicos sobre corporalidades que desviam da norma, colocando no estigma de “doenças” experiências lésbicas, gays, trans. A lesbianidade e a homossexualidade estão dentro de uma lógica de nomeação cisheterossexual, ou seja, se consituem enquanto oposto do “normal”. Anteriormente, “mulheres e homens homossexuais” eram identificações anormais até os movimentos lésbicos e gays usarem enquanto identidade política.
Dito isso, sapatão – um xingamento e não uma identidade ligada ao gênero como lésbica – torna-se uma categoria potente de identificação política, pois enfrenta a norma, invertendo quem nomeia: sim, somos sapatão!
Em suma, sapatão é uma categoria aberta à manada queer, como escreve Preciado, onde sapas, bixas, translesbixas, boycetas, caminhoneiras etc. podem existir sem estarem condicionades à categoria mulher, vivenciando lesbianidades em múltiplas corporalidades além do binarismo de gênero e do olhar clínico das ciências biomédicas.
Sapatão: breve contexto histórico do pensamento lésbico
Atualmente, o aumento das letrinhas dentro da sigla LGBTQIA + tem a ver com a luta constante de cada movimento social inserido nela. Com o movimento lésbico, não foi diferente. A história lésbica no Brasil é muito importante para a formação dessa sigla.
Em 1983, no dia 19 de agosto, um grupo de mulheres lésbicas protagonizaram o StoneWall brasileiro. Ligadas ao jornal independente ChanacomChana (1983) e ao Grupo de Ação Lésbica e Feminista (GALF), essas mulheres organizaram um ato contra a lesbofobia em um bar na cidade de São Paulo. Após serem expulsas pelo dono do estabelecimento, elas iniciaram a leitura de um manifesto lésbico, transformando este ato no dia do Orgulho Lésbico. Porém, compreendemos a invisibilidade quando, dentro do movimento LGBTQIA +, esta história não é contada e nem reconhecida como marco importante do antigo movimento LGBT brasileiro.
Interessante evidenciar que intelectuais lésbicas constituíram bases importantes das teorias feministas e de gênero, como Judith Butler, Audrei Lord, Angela Davis, Monique Wittig, Gloria Anzaldúa, Cassandra Rios, Yuderkys Espinosa, Raíssa Grimm Cabral, Miriam Grossi. Essas pessoas produziram conceitos e ferramentas teóricas necessárias para questionar gênero, mulher e a nomenclatura Lésbica. São alguns nomes dentre o mar de intelectuais que escrevem desde vivências lesbianas de corporalidades cis, negras, indígenas, brancas, periféricas, de classe média, campesinas, trans, gordas etc.
Para finalizar, gostaria de retomar a aliança entre a categoria lésbica e sapatão. Não há o que abandonar. Ambas constituem experiências de sujeitos que vivem lesbianidades a partir de diferentes corporalidades… muito além do que se entende por mulher. Estamos de mãos dadas contra a cisgeneridade lesbofóbica e a binaridade de gênero que aprisiona nossos comportamentos e práticas sexuais em compartimentos restritos demais para desejos potentes.
A REVOLUÇÃO SAPATÃO É AGORA!