Tristes, loucas ou más. Se hoje somos qualificadas assim e julgadas silenciosamente ou escancaradamente pela sociedade, que nos cobra um absurdo enquadramento em padrões específicos, imaginem que difícil existir como uma mulher no século XV?!
No texto do blog da Sapatista dessa semana, vamos falar da caça às bruxas, um termo comumente utilizado para se referir aos eventos ocorridos durante cerca de quatro séculos, quando a Igreja liderou uma grande investida contra mulheres que, de alguma forma, haviam ferido as expectativas sociais, políticas ou religiosas e que pertenciam geralmente à classe social mais humilde. Atualmente, essa expressão faz referência à perseguição sistemática realizada em relação a algum grupo.
Quem eram as bruxas?
O “Martelo das bruxas”, publicado em 1487, consiste no principal registro sobre quais eram as características utilizadas para a identificação das mulheres que seriam condenadas nessa época.
Mulheres que colhiam, cultivavam e tinham conhecimentos sobre como preparar receitas a partir de plantas foram perseguidas porque tais saberes e práticas populares eram condenados. As mulheres eram descritas como seres selvagens em oposição ao modelo defendido de mulheres passivas, dóceis, obedientes, submissas e subordinadas ao controle dos homens. A fogueira foi defendida como melhor recurso por eliminar o sangue e a ameaça de contaminação.
Além disso, as principais acusações eram referentes às práticas sexuais e reprodutivas. Sendo assim, os desejos e prazeres sexuais das mulheres eram considerados como demoníacos. Nesse sentido, a condenação do desejo sexual chegava a tal ponto que uma das supostas evidências afirmada para que as mulheres fossem queimadas era possuir um clitóris grande, como se um clitóris grande fosse uma marca do demônio.
Parteiras e curandeiras foram perseguidas como praticantes de feitiçaria. Essas mulheres eram uma ameaça para as sociedades profissionais em torno das quais se registram os novos saberes especializados que serão validados como científicos, como a medicina, que começa a organizar-se como categoria no século XVI.
Segundo Marcela Pastana, a Inquisição exerceu um papel fundamental para o início de uma organização social em que a submissão dos corpos das mulheres e de suas capacidades sexuais e reprodutivas fosse explorada economicamente, a serviço do Estado. A caça às bruxas foi uma guerra contra as mulheres na tentativa de degradá-las, demonizá-las e destruir seu poder social.
Tribunais de Inquisição ou a caça às bruxas da Idade das Trevas
Entre as idades Média e Moderna, a Igreja estipulou a clara perseguição contra aqueles que representavam uma ameaça à hegemonia do cristianismo católico.
Muitas vezes, mesmo sem um conjunto de provas bem acabado, uma pessoa poderia ser acusada de transgredir o catolicismo e, com isso, obrigada a se apresentar a um tribunal. Geralmente, quando a confissão não era prontamente declarada, os condutores do processo estipulavam a prisão do acusado. Nesse momento, o possível herege era submetido a terríveis torturas que pretendiam facilitar a confissão de todos os crimes dos quais era acusado.
Além disso, o terror presente nesses métodos de confissão era abominável; porém, os valores e a cultura dessa época permitiam que a tortura e o castigo fossem considerados como um meio de revelação pelo qual o réu teria dimensão de seus pecados e salvação espiritual daqueles que se desviavam dos dogmas. Inclusive, muitas sessões eram acompanhadas por médicos que se certificavam de que a pessoa não faleceria com as penas empregadas.
Inqusitio haereticae pravitatis
A instituição denominada Inqusitio haereticae pravitatis, conhecida como inquisição, foi criada pelo Papa Gregório IX, em 1233.
No contexto, é importante entendermos que existia o catarismo, uma heresia que pregava a existência de dois deuses, um deus bom e um deus mau. Para a dogmática católica, a prática do catarismo era um problema sério, pois se negava a Trindade (pai, filho e espírito santo). Uma grave consequência para isso era a perseguição popular, que resultava em pequenas guerras e linchamentos. Assim, o papa Inocêncio III tomou as primeiras medidas mais drásticas contra os hereges, excluindo estes das funções públicas e confiscando seus bens.
Passado o período de turbulências do século XII, no século seguinte, a heresia dos cátaros ainda persistia. Assim, a Igreja fundou um tribunal de inquirição judicial, com poder investigativo, para atestar se os acusados de heresia eram de fato hereges, com a criação da Santa Inquisição pelo Papa Gregório, em 1233. Mas quem executava o herege não era a Igreja, e sim a autoridade civil, o poder secular, ao qual ele era entregue.
Em Portugal, onde a presença de judeus no comércio era muito acentuada, o rei Manuel I resolveu estabelecer a conversão forçada dos judeus, em 1497. Os católicos de nascença viam com desconfiança a conversão religiosa dos judeus. Com isso, vários episódios de violência ocorreram no início do século XVI. Sem conseguir sustentar essa situação conflituosa, o rei Dom João III preferiu a autorização para instalar os domínios do Tribunal do Santo Oficio em Portugal.
Assim, os países ibéricos tornaram-se um dos principais focos de atividades da Inquisição. Por contarem com diversas colônias na América, o tribunal também foi instalado a fim de regulamentar a religiosidade nas colônias. As sentenças anunciadas pela Igreja foram responsáveis por mais de 50 mil mortes em todo o mundo. A grande maioria das vítimas eram mulheres, condenadas pela prática de bruxaria.
Ao buscar a hegemonia da fé, o catolicismo daquela época utilizou de meios que hoje causam vergonha aos próprios católicos. Em 2000, no período de preparação para o Grande Jubileu, por iniciativa de João Paulo II, a igreja católica reconheceu a natureza desastrosa de seus atos. O Papa pediu perdão para sete categorias de pecados cometidos pela Igreja relacionados à inquisição.
Nesse contexto, alguns historiadores nos pedem que acreditemos que a caça às bruxas foi completamente razoável no contexto da estrutura de crenças da época. Porém, é inaceitável recordar que muitas pessoas, principalmente mulheres, foram torturadas e queimadas vivas por acusações que não eram facilmente identificáveis ou compreensíveis.
Joana D’Arc: da caça às bruxas à santidade
Das mulheres que queimaram nas fogueiras, uma das mais lembradas é Joana D’Arc, uma jovem francesa, que nasceu na comuna de Domrémy-la-Pucelle, na região de Lorena.
A jovem era a caçula de quatro filhos do casal de agricultores e artesãos Jacques d’Arc e Isabelle Romée. A família da garota era muito religiosa, inclusive ela, que frequentava a igreja com regularidade. Sua infância e adolescência foram marcadas pela Guerra dos Cem Anos, conjunto de batalhas travadas entre a França e Inglaterra pela conquista da França.
A adolescência de Joana foi conturbada. Como contou em seu julgamento, o lugar em que cresceu era marcado por conflitos entre as crianças, e algumas ganhavam machucados graves. Em certa ocasião, inclusive, seu vilarejo foi incendiado.
Aos 13 anos, ela revelou ter ouvido vozes e ter tido visões pela primeira vez. No jardim de seu pai, recebeu aparições que acreditava serem do arcanjo São Miguel, a Santa Catarina de Alexandria e Santa Margarida de Antioquia. Nessas visões, as figuras teriam lhe dito que ela deveria integrar o exército francês e ajudar o rei Carlos VII na luta contra a Inglaterra. Na época, os episódios claros e frequentes fizeram Joana acreditar que as visões se tratavam de mensagens divinas. Hoje em dia, os profissionais da saúde especulam que talvez a garota poderia sofrer de alguma condição como esquizofrenia ou epilepsia.
Aos 16 anos, Joana teria pedido a um parente para levá-la até a cidade de Vaucouleurs, onde conversou com um funcionário do reino francês pedindo que fosse levada à corte real francesa, em Chinon. O funcionário não a levou, mas isso não a deteve, e ela insistiu por algum tempo. Até que, em 1429, com a aprovação popular, o funcionário aceitou o pedido, cedendo a ela um cavalo e a proteção de militares que fizeram a escolta dela pelo caminho. Porém, antes de partir para visitar o rei Carlos VII, Joana cortou seu cabelo curto e vestiu-se com trajes masculinos, chegando ao reino após onze dias de viagem.
Joana d’Arc: uma mulher no exército francês
Até hoje, um dos maiores mistérios da história é compreender como o rei Carlos VII aceitou receber em seu gabinete uma adolescente analfabeta que alegava receber mensagens divinas. E mistério maior ainda é como ele teria acreditado nas palavras de Joana e teria permitido que ela liderasse parte de seu exército em uma guerra. Muitos historiadores relatam que a situação precária e as constantes derrotas do exército francês teriam sido uma das razões para que confiassem nas palavras de d’Arc.
Depois da conversa com o rei, já com 17 anos, ela teria conseguido a autorização real para integrar o exército francês. Porém, apesar de existir a crença popular de que d’Arc teria comandado o exército francês, esse é um assunto incerto que segue sendo debatido.
Após a conversa com o rei, teria sido entregue a ela armas, vestimentas e autorização para comandar uma tropa com cerca de 7 mil homens. Existem relatos que acreditam que suas opiniões teriam tido um profundo efeito nas decisões do exército, como se seus conselhos fossem tidos como divinos. E, apesar da incerteza, é consenso que o exército francês obteve notável sucesso durante o período em que a jovem foi integrante. Segundo a filósofa Siobhan Nash-Marshall, autora de um livro biográfico sobre a personagem, Joana teria fornecido um impulso moral aos civis e aos soldados franceses.
Assim, para os ingleses, os poderes da jovem Joana d’Arc e as vitórias dos inimigos indicavam que ela era uma bruxa possuída pelo diabo. Em maio de 1430, a cidade de Compiégne foi tomada pelos inimigos, e ela decidiu ir, mesmo com avisos de que poderia ser capturada pelos ingleses. Por um valor de 10 mil libras, foi vendida ao exército da Inglaterra. Foi levada para julgamento e as acusações eram todas de ordem religiosa.
Sua virgindade foi questionada e o fato de utilizar roupas masculinas. Enquanto foi julgada, o rei francês não fez nenhum esforço para recuperá-la. Então, no dia 30 de maio de 1431, com 19 anos, foi queimada viva, amarrada em uma estaca em uma praça pública de Rouen, ao ser acusada de heresia e feitiçaria por um tribunal eclesiástico.
Enquanto o fogo se espalhava por seu corpo, a plateia a chamava de bruxa, e ela pronunciava “Jesus! Jesus!” como suas últimas palavras.
Anos depois, o julgamento de Joana d’Arc foi anulado pelo papa Calisto II, considerando a jovem inocente da acusação de heresia e bruxaria. Então, no começo do século XX, a Igreja Católica deu início ao processo da beatificação dela e, em 1920, durante o pontificado do papa Bento XV, Joana foi enfim canonizada.
Atualmente, Joana d’Arc é considerada a santa padroeira da França e uma das grandes heroínas da história do país, tendo o dia de sua morte na fogueira dedicado a homenagens para ela.
Cerveja e bruxaria
Até o século 16, a cerveja foi se tornando um alimento comum para as famílias da Europa, e a sua produção era uma tarefa doméstica para as donas de casa.
Para serem reconhecidas pelos clientes, elas usavam chapéus grandes e pontudos e geralmente estavam diante de grandes caldeirões, onde a brasagem acontecia. A vassoura era pendurada na porta das casas, para indicar que ali se vendia cerveja.
No contexto da crise da Idade Média e do início do capitalismo, os movimentos considerados hereges foram perseguidos, e isso incluía qualquer tipo de organização feminina. Foi nesse contexto que os concorrentes aproveitaram para retirar a produção de cerveja das mãos femininas. Isso quer dizer que muitas das bruxas eram, na verdade, mulheres cervejeiras. Como o apreço pela bebida já era popular, não se condenou a cerveja como fruto de bruxaria, e sim suas principais fabricantes, as mulheres, que deveriam ter seu tempo investido nos cuidados da casa e dos filhos.
Enquanto isso, os homens seguiram dominando a técnica de produção da bebida e passando a lucrar com essa atividade, que antes era exclusiva das mulheres.
Você lembra do kit do festival mulher cervejeira, que lançamos com o nome de bruxaria? Foi inspirado nessa história! Agora, conhecendo tudo isso, pensamos que é provável que nós, modernas mulheres cervejeiras e feministas, infelizmente seriamos fortes candidatas a queimar nas fogueiras da inquisição. E aí, qual a sua opinião?