Nos últimos anos, assistimos a um crescimento vertiginoso da produção e do consumo de cervejas artesanais no Brasil. Segundo dados da Associação das Microcervejarias Brasileiras (Abracerva), em 2019, chegamos a marca de 1000 cervejarias registradas no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Isso sem contar as cervejarias ciganas, que não possuem fábrica própria, mas produzem suas receitas em fábricas de terceiros.
Mesmo com a pandemia, os números desafiam as estatísticas de crescimento do setor. De acordo com o Anuário da Cerveja 2020, o número de cervejarias registradas no país subiu 14,4% no ano passado. Sendo São Paulo, atualmente, o estado com mais cervejarias, contendo aproximadamente 285 estabelecimentos.
No entanto, quando falamos de cerveja artesanal, esse universo vai muito além do copo e do mercado. O processo de produção de cerveja, que mistura arte e ciência, possui por trás pessoas extremamente encantadas e apaixonadas pelo que fazem. Não é à toa que, quando alguém bebe uma cerveja artesanal pela primeira vez, é como se um portal se abrisse e um novo universo de sabores e aromas fosse descoberto.
Porém, mais do que isso, a revolução que a cerveja artesanal despertou no Brasil não ficou somente em nossas percepções sensoriais. Diversos questionamentos e movimentos surgiram a partir do entendimento do consumo como um ato político. O consumo da cerveja artesanal que há poucos anos era muito restrito, agora está mais disseminado, e buscam-se vias para que seja cada vez mais acessível e democrático.
Então, que tal, no texto de hoje do blog da cerveja Sapatista, conhecer um pouco mais a fundo a cultura cervejeira brasileira, de onde ela surgiu e o que ela despertou por aqui?
Cultura cervejeira brasileira e suas influências
No Brasil, a cerveja chegou provavelmente no século 17, com a colonização holandesa na região do Nordeste, pela Companhia das Índias Ocidentais. Após a expulsão dos holandeses, a cerveja não esteve presente no Brasil durante um século e meio, até o início da importação de cervejas europeias, principalmente realizado pelos ingleses, em barris, a partir de 1808. Com o início da produção de cerveja no Brasil, a cultura da cerveja inglesa entrou em crise e, somente no final do século, a importação voltou a crescer, com as cervejas alemãs que vinham em garrafas.
No livro “A história da Alimentação no Brasil”, o autor Luís da Câmara Cascudo ressalta que, em nosso país, a cerveja foi historicamente representada como uma bebida massificada pouco sofisticada, presente no rol dos bens de consumo de baixo apelo gastronômico. A cerveja foi sempre considerada um refrescante e não bebida digna de figurar nas refeições, acompanhando alimentos. Esse era o critério mesmo nos países secularmente produtores de cerveja, como Alemanha, Inglaterra e Holanda. Na mesa, vinho. No bar, cerveja. Mas, com a inserção da cerveja artesanal e das infinitas possibilidades de harmonização, essa história mudou.
Nos Estados Unidos, um verdadeiro boom cervejeiro ocorreu, em parte influenciado pelo “renascimento” das cervejarias europeias e, em parte, pela revogação, realizada em 1979, das restrições à produção caseira de cerveja no país, um resquício da já extinta Lei Seca. Com a disponibilidade de matérias-primas e graças ao seu relativo baixo custo, a produção caseira de cerveja (homebrewing) como hobbie difundiu-se entre os norte-americanos, encorajando a formação de inúmeras microcervejarias.
De acordo com o historiador Victor Giorgi, além de retomar a adormecida tradição cervejeira, os novos empreendimentos estadunidenses pautaram-se na criatividade, explorando a diversidade de sabores, aromas, texturas e cores das bebidas, contrapondo-se à carência de variedade de tipos de cerveja no mercado e a excessiva taxação do produto. Além disso, tais companhias propõem a criação de uma rede de cooperação com outros pequenos negócios, fortalecendo seus vínculos com suas respectivas comunidades, o que é explicitado pelo lema support your local brewery (apoie sua cervejaria local).
Contexto atual da cultura cervejeira brasileira
Atualmente, em busca de novos aromas e sabores, o Brasil vive uma revolução semelhante à das décadas de 70 e 80 que aconteceu nos EUA. São empreendimentos abrindo, cervejarias, distribuidores, festivais, cursos, concursos, eventos que envolvem milhares de pessoas. Segundo a especialista Tatiana Rotolo, isso tudo aconteceu de modo extremamente rápido, no decorrer de menos de 20 anos, e este processo tem mudado hábitos de consumo, alimentando relações sociais e criando em torno de si uma “cultura cervejeira”, também chamada de “cultura craft beer”, uma vez que esse processo do Brasil tem bastante influência do movimento norte-americano, fortemente enraizado no consumo de cerveja artesanal, com modos específicos de se comunicar, com atitudes diferenciadas e identidades próprias.
Nesse contexto, é interessante destacar a formação de várias confrarias de cerveja no país, reunindo amigos ou pessoas interessadas em degustar rótulos diversos, além de trocar experiências e informações a respeito da bebida e sua história. Tanto produtores como também consumidores e outras pessoas ligadas às cervejas artesanais estão promovendo um movimento em prol da disseminação da cultura cervejeira, entendida como todo o universo histórico, cultural, nutritivo e organoléptico que permeia a bebida.
Assim, mesmo que a maioria das cervejas consumidas ainda sejam as cervejas de massa e que uma parcela das cervejas artesanais consumidas seja importada, rapidamente uma nova filosofia surgiu no mercado cervejeiro brasileiro, de consumir cervejas locais e, em alguns casos, de produzir a própria cerveja em casa. Inclusive, como contamos em outro texto aqui no blog, foi a partir desse movimento de experimentar e estudar rótulos diferentes nacionais e de outros países, em grupo, e de produzir cerveja em casa, que surgiu a cerveja Sapatista.
Cultura cervejeira: o movimento é a única constante!
Reunimos algumas iniciativas organizadas por mulheres, que movimentaram o mercado cervejeiro, e que participamos ao longo de nossa trajetória. Confira:
Festival Mulher Cervejeira
Em 2019, a cerveja Sapatista juntou-se às cervejarias Oripacha, DaLuz e Minore e à coletiva gastronômica Pitanga Gastronomia para reconhecer e valorizar o conhecimento e a experiência das mulheres no meio cervejeiro, realizando um inédito festival cervejeiro em Porto Alegre, 100% organizado por mulheres.
O festival, que, em sua primeira edição, visou celebrar e resgatar o protagonismo das mulheres no meio, seguiu durante a pandemia com postagens nas redes sociais do @festivalmulhercervejeira refletindo sobre as dificuldades de acesso, inserção, atuação e reconhecimento de minorias no mercado cervejeiro. No futuro, a ideia do festival é realizar ações colaborativas com mulheres de todo o país e tornar o conhecimento sobre cerveja mais descomplicado e acessível.
Além do copo
A partir de um grupo de whatsapp de mulheres que trabalham no chão de fábrica de cervejaria em todo o Brasil, surgiu a ideia de realizar um evento para debater não só questões técnicas, mas também assuntos que as interessam e indignam no meio cervejeiro. Depois de muitas conversas e troca de experiências, em novembro de 2020, ocorreu a primeira edição do evento, em formato de webinar, com palestras e mesas redondas.
Nossa fundadora, Roberta Pierry, teve a honra de participar como uma das convidadas, em uma mesa redonda sobre a diversidade no meio cervejeiro e contribuiu em uma discussão excelente sobre inclusão e preconceito no mercado. Com a certeza de que ainda existem questões relacionadas à cerveja que precisam ser discutidas além do copo, a segunda edição deve acontecer em outubro de 2021, com ingressos à venda pelo sympla e programação disponível no instagram @alemdocopo.
Surra de lúpulo
O podcast cervejeiro da IPAcondríaca, codinome da beer sommelière Ludmyla Almeida no instagram, entrevista profissionais do mercado cervejeiro sobre estilos, marcas, eventos, harmonizações e viagens cervejeiras, com atenção à representatividade feminina.
Todas as quintas-feiras são explorados assuntos do universo da cerveja artesanal de forma curiosa, e a Roberta foi entrevistada para contar um pouco sobre a trajetória da Sapatista. Vale a pena conferir!
E aí, gostou de saber mais sobre o que permeia o universo da cerveja artesanal e como a história começou por aqui? Não deixe de acompanhar semanalmente nossos textos aqui no blog da Sapatista e fique por dentro sobre tudo o que acontece nesse universo apaixonante.