A cerveja é produzida a partir de quatro ingredientes básicos: água, malte, lúpulo e levedura. E cada um desses ingredientes contribui com diferentes aromas e sabores para a bebida.
Quando falamos da levedura de cerveja, o principal ingrediente fundamental para que toda a mágica da produção de cerveja aconteça, há um imenso universo de possibilidades. Não existe uma única levedura de cerveja, são diversos tipos de leveduras de cerveja e é como se cada uma tivesse uma “personalidade”, trazendo distintos perfis de aroma e sabor para cada cerveja.
No laboratório, chamamos de diferentes “cepas” e cada uma tem preferências nutricionais e de temperatura que podem ser bem distintas. Sabe de onde vem o nosso tão querido álcool da cerveja? Aquele aroma de banana de uma cerveja de trigo, onde não houve a adição de fruta? Hoje, no blog da cerveja Sapatista, vamos desvendar os mistérios do maravilhoso universo das leveduras de cerveja e conhecer melhor esses seres vivos maravilhosos.
Levedura de cerveja: um ser vivo que fermenta
Para começar as apresentações, precisamos entender de que tipo de ser vivo estamos falando. Leveduras são fungos unicelulares, que se reproduzem geralmente por brotamento.
Durante a produção de cerveja, uma única célula vai dar origem a diversas outras células filhas de levedura, que irão se desprender da célula mãe e auxiliar na fermentação do mosto cervejeiro.
Como você já deve ter visto na nossa postagem sobre produção de cerveja, o mosto é basicamente um caldo que extraímos do malte, na etapa da brassagem. Esse caldo está repleto de açúcares e outros nutrientes, e tudo isso vai virar alimento para nossas estimadas leveduras cervejeiras.
No mundo cervejeiro, costumamos falar que não são os seres humanos que fazem realmente a cerveja. Nós apenas trabalhamos fornecendo alimento para as leveduras, e elas consomem o que oferecemos produzindo álcool, gás carbônico e diversos outros compostos de aroma e sabor, como ésteres, álcoois superiores, fenóis e muitos outros que podem trazer tanto aromas maravilhosos, como também muito desagradáveis para nossas bebidas, através da fermentação.
Para esses aromas positivos, costumamos dar o nome de on flavors e incluem, por exemplo, os aromas equilibrados de tutti frutti e banana que esperamos em uma Weiss, provenientes de ésteres gerados por leveduras na fermentação.
Por outro lado, para os aromas indesejáveis, damos o nome de off flavors e geralmente esses aromas estão presentes quando ocorre algum problema de estresse da levedura durante a fermentação, podendo incluir aromas que remetem a acetona, maçã verde, entre outros.
Existem compostos que podem ser tanto um off quanto um on flavor, isso vai depender da concentração em que ele está presente na bebida e também do estilo de cerveja em que ele aparece. Outro defeito bem comum relacionado à levedura é a presença de diacetil, um composto que lembra manteiga. Ele aparece nas cervejas, principalmente quando a fermentação é interrompida muito cedo para retirar logo a cerveja do tanque, e a levedura não fica em contato tempo suficiente com o mosto para reabsorver os precursores de sabores ruins. Como esse composto depende de temperaturas elevadas para aparecer na cerveja, muitas vezes ele não é detectado pelo cervejeiro na cervejaria, mas acaba sendo detectado pelo cliente final após o aquecimento da bebida.
Para se conseguir uma boa fermentação, é preciso inocular levedura em quantidade suficiente, e essas células precisam estar vivas e saudáveis. Outro fator importante é a temperatura. Se estiver abaixo da temperatura adequada, elas não vão exercer atividade. Em situação acima da temperatura recomendada, podem produzir off flavors.
Nesse sentido, um mosto com pH adequado e rico em nutrientes também é fator fundamental para que a levedura fermente perfeitamente. Além disso, há outros elementos da cerveja que são oriundos da levedura. A espuma, por exemplo, é diretamente ligada à produção de gás carbônico. A cor, apesar de ser, em sua maior parte, resultante do malte, vai sofrer alterações através da fermentação, quando as leveduras baixam o pH da bebida.
Levedura de cerveja: da magia à biotecnologia
Hoje sabemos que as leveduras são as responsáveis pela fermentação da cerveja, mas nem sempre foi assim. No passado, por muito tempo, a fermentação alcoólica foi considerada divina e mágica, era algo “das Deusas”. Posteriormente, a fermentação alcoólica foi explicada como uma reação química espontânea promovida pelo contato com o ar, onde a levedura era considerada um mero subproduto.
Até 1516, quando foi lavrada a famosa “Lei da Pureza Alemã” ou Reinheitzgebot, que obrigava que todas as cervejas fossem produzidas apenas com água, malte e lúpulo, a levedura ainda não era conhecida. Foi apenas com os estudos de Louis Pasteur, em meados de 1800, que foi concluído que as leveduras estavam diretamente envolvidas na fermentação.
Além disso, os avanços obtidos na pesquisa com cerveja e vinho impulsionaram muitos outros avanços na pesquisa científica e na biotecnologia, que trouxeram benefícios à saúde humana.
Outro fato que nos aproxima ainda mais desses fungos e que torna essa relação mais íntima é que a estrutura das células, as unidades básicas de vida, de seres humanos e leveduras são bastante semelhantes. É incrível pensar que somos mais parecidos com as leveduras, do ponto de vista celular, do que elas são parecidas com bactérias, apesar de ambas serem seres microscópicos.
A olho nu, não conseguimos enxergar as leveduras, mas elas estão presentes em todos os ambientes possíveis. A lama que resta no final de uma fermentação de cerveja é, na maior parte, composta de leveduras, inclusive muitas delas vivas. Nesse momento, conseguimos enxergá-las porque ali tem bilhões de células de leveduras concentradas.
Ademais, é interessante saber que, mesmo antes de reconhecer as leveduras como os organismos responsáveis pela fermentação, os cervejeiros já contribuíam para sua seleção artificial, retirando a “espuma mágica” das melhores cervejas e reaproveitando a mesma para fazer novas fermentações. Semelhante ao que algumas cervejarias fazem hoje, retirando a “lama” (a biomassa de levedura que decanta ao fim da fermentação) resultante dos tanques de fermentação de cerveja e reaproveitando para fazer novos lotes de cerveja. Visto que a levedura de cerveja é um dos insumos de maior custo na receita, esse reaproveitamento acaba trazendo benefícios econômicos.
Assim, leveduras específicas para a produção de cerveja foram se diferenciando das leveduras selvagens, que são as leveduras existentes normalmente no ambiente que nos cerca. Atualmente, qualquer levedura que não seja aquela escolhida para a fermentação é chamada de “levedura selvagem” e, geralmente, o cervejeiro as considera um tipo de contaminação. Normalmente elas aparecem quando há algum problema de limpeza e sanitização e fazem tanques inteiros de cerveja ir para o ralo.
Levedura de cerveja: Ale x Lager
Uma das principais dúvidas que paira sobre os bebedores de primeira viagem é a diferença entre as cervejas Ale e Lager.
Para diferenciar essas duas famílias cervejeiras de uma forma mais simples, o que vai definir é o tipo de levedura que é utilizada para a fermentação. Quando se decide o estilo para produzir, geralmente uma levedura ALE ou LAGER então será escolhida de acordo com as características esperadas para aquele estilo.
Hoje, na indústria cervejeira, geralmente, as leveduras vêm liofilizadas (secas) ou líquidas, e as mais utilizadas são das espécies Saccharomyces cerevisiae e a Saccharomyces pastorianus, que parece ter evoluído de uma mistura entre Saccharomyces cerevisiae e Saccharomyces eubayanus (que veio do vinho). A Saccharomyces cerevisiae é a mesma espécie de levedura que faz o pão. Mas a diferença está nas “cepas” que falamos mais cedo, lembra? Elas possuem diferentes “personalidades”. Se colocarmos uma levedura de pão pra fermentar um mosto de cerveja, provavelmente ela vai produzir álcool, mas não produzirá aromas e sabores desejáveis.
Levedura de cerveja da família Ale
As leveduras da família ALE são da espécie Saccharomyces cerevisiae e também são conhecidas como leveduras de alta fermentação. A fermentação ocorre em temperaturas mais altas do que nas LAGERS e produz cervejas geralmente mais complexas de aroma e sabor, lembrando aromas de flores e frutas. Estilos produzidos com essas leveduras incluem IPA, Weiss, Stout, Dubbel, Bitter etc. Dentro dessa família, existem cepas mais neutras e cepas que produzem aromas mais intensos.
Levedura de cerveja da família Lager
Por outro lado, as leveduras da família LAGER são geralmente Saccharomyces pastorianus, também são conhecidas como leveduras de baixa fermentação e costumam fermentar em temperaturas mais baixas, produzindo cervejas com uma característica de aroma e sabor mais limpo, sem muitos compostos derivados da fermentação.
Ao contrário do que muitos entendem, LAGER não é um estilo de cerveja e sim uma família que representa cervejas feitas com determinado tipo de levedura, e os estilos incluem pilsen, bock, vienna, entre outras. Mesmo sendo a família mais conhecida por conta das cervejas PIlsen, esse grupo de cervejas só começou a ser reconhecido e fabricado em torno de 1500. Antes disso, a maioria das cervejas conhecidas e produzidas era da família Ale.
Leveduras selvagens e bactérias presentes no ar
Existem também cervejarias que utilizam as leveduras selvagens e bactérias presentes no ar para fermentar suas cervejas, produzindo estilos que possuem características desejáveis mais ácidas e peculiares. Embora apenas recentemente elas têm aparecido por aqui no Brasil, na história cervejeira, cervejas com essas características não são novidade. Quando ainda não haviam sido criadas técnicas de isolamento de leveduras, ou mesmo nem se sabia da existência delas, praticamente todas as cervejas possuíam acidez, por conta da fermentação espontânea através das bactérias e leveduras selvagens presentes no ar.
Na Bélgica, fermentações espontâneas são realizadas há bastante tempo, dando origem, inclusive, a uma família de cervejas, chamada de Lambic. Essa família de cervejas é composta por diversos estilos onde predominam, no aroma e sabores, notas rústicas provenientes principalmente de leveduras do gênero Brettanomyces. O processo de fermentação é bem mais lento do que nas Ale e Lagers e pode durar de 1 a 2 anos em temperatura ambiente.
Levedura de cerveja: Brettanomyces
Antigamente, se acreditava que as leveduras desse gênero eram encontradas apenas nas cervejas inglesas e belgas, mas hoje sabe-se que elas são encontradas em todo o mundo, inclusive em outras bebidas fermentadas, como kombucha, vinho e sidra. Algumas vezes, sendo considerada um contaminante.
Além disso, elas se comportam diferente de outras leveduras normalmente utilizadas para fazer cerveja. Enquanto outras leveduras cervejeiras produzem álcool na ausência de oxigênio, a Brettanomyces produz álcool a uma taxa maior na presença de oxigênio e também produz ácido acético. As três espécies utilizadas nas cervejas são Brettanomyces bruxellensis, Brettanomyces lambicus e Brettanomyces anomalus. Elas se multiplicam devagar e vivem por muito tempo. Além de aromas frutados como abacaxi, também estão associados à Brettanomyces aromas fenólicos que remetem a estábulo e suor de cavalo.
Levedura de cerveja: Kveik
De acordo com as pesquisadoras do Laboratório da Cerveja, existe uma nova moda entre os cervejeiros, que é produzir cervejas com leveduras kveik.
“Kveik” é uma palavra dialética, mais especificamente usada no oeste da Noruega, que significa levedura ou levedura de fazenda. Elas recebem o nome de acordo com a localidade em que foram domesticadas, sendo algumas delas chamadas de Stranda, Hornidal, Voss, Granvin, Stordal Ebbengarden e Muri.
As leveduras kveik não são apenas um único tipo de microrganismo, mas trata-se de um grupo extremamente diversificado e distinto das leveduras mais comuns utilizadas na produção de cerveja ao redor do mundo.
Durante anos, essas leveduras foram selecionadas pelas práticas cervejeiras utilizadas nas fazendas e, consequentemente, domesticadas por meio de reutilizações. Dessa forma, passaram a apresentar características muito particulares, que não são encontradas em outras leveduras Ale comuns.
Nesse sentido, uma característica interessante dessas leveduras de cerveja é a capacidade de fermentar em temperaturas mais altas, consideradas altas para as demais leveduras cervejeiras do tipo Ale, que fermentam geralmente entre 18º a 22ºC. Para os cervejeiros caseiros de hoje, isso significa uma facilidade, pois não precisam controlar a temperatura da cerveja durante a fermentação. Geralmente, para os cervejeiros que utilizam leveduras ALE e LAGER, a falta de controle da temperatura de fermentação acarreta em off flavors.
Levedura de cerveja: Blends
Diferentes leveduras podem atuar juntas ou com bactérias complementando as características esperadas para determinado estilo e trazendo complexidade. São os chamados blends.
Geralmente, essas misturas são utilizadas para conseguir chegar na atenuação desejada de cervejas mais alcoólicas ou para gerar mais complexidade de ésteres e acidez. Cervejas produzidas com blends podem demorar mais tempo para terminar a fermentação, pois o perfil sensorial vai depender da produção e transformação de compostos por distintos tipos de microrganismos.
E aí, gostou de saber mais sobre as leveduras de cerveja, que são a verdadeira alma da cerveja? Nos dá um feedback e aproveita e nos conta em nossas redes que conteúdos gostaria de ver aqui no blog da Cerveja Sapatista. Te esperamos com mais informação cervejeira na próxima semana!